A Vida Como ela Erra
Nilson Primitivo por Marcelo Montenegro
Pegamos um táxi na rodoviária e confesso que sempre sinto um frio na barriga quando ele rasga a Barata Ribeiro. É aí que a história começa. O Cemitério de Automóveis – grupo que trabalho como operador de luz e sonoplastia – chegando para uma mostra de repertório no teatro Ziembinski, na Tijuca, a convite dos amigos Roberto Alvim e Luciana Borghi. Nesta primeira leva estávamos eu, o ator e dramaturgo Mário Bortolotto, o cenotécnico e poliglota Régis Santos e o ator e cenógrafo Gabriel Pinheiro. A produção incluía hotel em Botafogo e um ap em Copacabana, para onde o táxi nos levava.
A primeira coisa que me chama a atenção é um distintivo do Santos na janela da sala, que, de lambuja, do alto do 10 º andar, enquadra o Bairro Peixoto embaixo e o Cristo à esquerda. Quem mora ali é um tal de Nilson Primitivo, Primitivo Gonzáles ou simplesmente Nilsão. Somos apresentados e fico sabendo que além de santista, ele nasceu – embora carioca – na cidade de Santos. Brother do Roberto e da Luciana, tinha alugado o ap para a produção e passaria o mês na casa da namorada – o que não aconteceu, já que alguns dias depois ele meio que brigou com ela e voltou perguntando se dava pra ficar lá, quer dizer, na casa dele.
“Tinha um cara onde eu trabalhava que usava muito efeito, sabe essas coisas de casamento, fusão, aquela breguice? Todo mundo que trabalhou com ele na época ficou traumatizado. Primitivo vem daí. É apelido de ilha mesmo. Eu não conseguia dar fade. Porra. Dez anos de profissão e nunca dei um fade. É tudo corte seco”.
Filme Livre
Realizada entre setembro e outubro de 2006, a última edição da Mostra do Filme Livre, que rola anualmente no Festival do Rio, programou diversos filmes do Nilsão. A homenagem se deu dentro do panorama “Cinema em Transe (Sessão Imprópria)”, dedicado a experimentos radicais de linguagem, ao lado de trabalhos de Jean Genet e John Lennon/Yoko Ono. Em maio de 2007, a Cinemateca Brasileira, em SP, exibiu uma retrospectiva completa do cineasta.
“Fiquei 7 anos fazendo filme e não passava em lugar nenhum, nem nos festivais com categoria experimental. Acho que botavam e tiravam rápido a fita com medo que ela fosse estragar o vídeo-cassete, não acreditavam que os filmes eram assim mesmo”, ri Nilsão, que logo mais deve cair pra Salvador – “o pior é que nêgo conhece não sei como” – onde também será exibido um apanhado da sua obra, composta até agora por 11 curtas. Sem contar o documentário Ventura e os videoclips das músicas “Vento” e “Sentimental”, dos Los Hermanos, com quem convive e trabalha há bastante tempo, seja na “estiva”, como ele diz, seja filmando. Recentemente registrou os últimos shows da banda, que anunciou uma parada, na Fundição Progresso.
Salve Jece Valadão
A Luciana Borghi já tinha dado a ficha do cara. Puta figura, conhecido no underground carioca, faz uns filmes malucos. Eu e o Marião rimos do título de um – Tesão em Saquarema – e naquela manhã em que chegamos, no primeiro usufruto do banheiro do ap – que viria a ser minha casa, do Régis e do ator Wilton Andrade durante um mês – dou de cara com uma foto da Lady Francisco e do Jorge Dória grudada no azulejo. Ela toda gostosa numa poltrona e ele em pé, olhando pra ela, com cara de babaca, uma pastinha embaixo do braço. Atrás dele, na parede, tinha um quadro, pouco acima da sua cabeça, com aquela imagem clássica do Churchill fazendo o V da vitória. Muito bom. Fico sabendo depois se tratar de um still de um filme do Vitor di Mello feito nos anos 70.
Conversava ontem à tarde com o Nilsão – estamos agora num boteco em São Paulo, dois anos depois dessa temporada carioca – sobre como foi sua participação no filme novo do José Mojica Marins. Numa analogia ao Glauber, que fez o mesmo com o Di Cavalcanti, falei que o fato dele ter filmado o velório do Jece Valadão – que era ator no filme – dizia muito do seu cinema. Assim como aquela foto do Churchill botando um chifre no Jorge Dória. “É, sem querer, acaba ficando um comentário”.
Deslizamento de câmera
Nilsão só filma em 16mm, com sobras de rolos vencidos, numa Bolex a manivela, usada na Segunda Guerra Mundial pelo avô do amigo Daniel Zarvos, fotógrafo do seu primeiro filme. “É minha bitola. Eu acho bonita essa textura meio sujona de fanzine, xerox, giz de cera. E comunica na forma a mesma coisa que quero comunicar no conteúdo. Outra coisa interessante da Bolex é que você vê uma coisa no visor e ela filma mais do que você está vendo. Então a linguagem não é do fotógrafo. É da câmera. Tem que abstrair completamente. É uma entrega”.
Still de Mais Velho
As primeiras revelações eram todas feitas em uma banheira. “Depois evoluí prum tupperware. Os negativos também são dados. Eu acabo gastando pouco, é uma coisa meio suburbana mesmo, tipo empinar pipa. Pra ter uma cópia, pego carona na telecinagem de algum filme de amigo, ou filmo direto da parede”. Pergunto da vez em que o técnico do laboratório disse que os rolos que ele tinha mandado revelar estavam estragados. “Já aconteceu mais de uma vez. Numa delas, o cara tava me explicando no telefone que deu deslizamento de câmera, que nem ia cobrar e tal. E eu tentando esconder a excitação, porra, ‘deslizamento de câmera’, já gostei só de ouvir o nome”.
Quando sai pra filmar, já filma montando. “O que aparecer apareceu. Até porque o mais legal disso é que é quase um jogo. É meio pra ver o que acontece. Lógico que sei o que eu gosto, a gente conversa antes do figurino e de coisas que me interessam, mas sempre sai muito diferente. E já fico prevendo esse diferente. De ficar com cor, de ficar um lado mais revelado que o outro. Eu assumo tudo e espero não ser preso por isso. Até porque eu gosto de assumir essa dificuldade. Acho que a partir do momento em que assume sua fraqueza, você acaba transcendendo ela. Você não fica resistindo à própria fragilidade. Por outro lado, não deixa de ser uma técnica também”.
A encarnação do demônio
Crounel Marins, filho de Mojica, no Diário das filmagens de A Encarnação do Demônio - volta do personagem Zé do Caixão depois de quase 30 anos longe das telas - escreveu:
“Foi proposta uma seqüência que necessitava de apenas mais um ator, que interpretaria o prisioneiro tatuado morto por Zé do Caixão e que vem assombrar o funerário. Tentamos contatar o ator já escolhido para o papel, mas não foi possível. De repente, o Paulo teve uma daquelas idéias que só a pressão faz surgir. Lembrando que neste filme contamos, por vários dias, com a presença do cineasta experimental Nilson Primitivo, que tomou imagens em 16 mm para um documentário, resolveu convidá-lo às pressas para o papel. Ele era imponente, quase 1,90, e tinha muitas tatuagens pelo corpo. Mas, como chegar para alguém numa noite de sábado chuvosa e propor algo como: “Você quer filmar hoje com o Zé do Caixão? Teremos apenas que pintar seu corpo inteiro, usar uma maquiagem que só sairá totalmente em alguns dias, deixá-lo careca e trancá-lo por algum tempo em um caixão”. Foi mais ou menos desta forma que o Sacramento abordou o Nilson pelo celular. A resposta, imediata, foi antológica: “E eu tenho que pagar quanto?”. “
“Fiquei sabendo que ele tava fazendo teste de elenco. Um monte de gente veio me falar e pensei, pô, será que eu tenho cara de figurante de filme do Zé do Caixão? Eu não sabia se ficava lisonjeado ou se mandava à merda. Na dúvida eu fazia os dois, vai tomar no cu, muito obrigado, me dá o endereço”.
“Eu tinha três rolinhos sem referência nenhuma, não sabia se era preto e branco, que asa era, falei foda-se. Vou sentar o dedo. Falei com o Paulo Sacramento, ele me arrumou mais negativos e disse que eu tinha liberdade pra fazer o que quiser. Uma vez, tava no meio das filmagens e tive que trocar rapidão o rolo da Bolex. Quando fui ver, eu tinha posto o filme ao contrário. Aí o Mojica passou por mim bem na hora que percebi a cagada. Eu devia estar com uma puta cara de bunda. Ele perguntou o que era e expliquei. Aí ele falou, dá um efeito interessante, já aconteceu comigo”.
Comício de Tudo
Lembro da gente conversando durante um chope na Adega Pérola, ao lado do ap do Nilsão e do que um dia foi o Teatro Opinião. Ele dizendo que achava A Idade da Terra, do Glauber Rocha, do caralho e eu o contrário. Ficamos amigos de cara e assim que se mudou para São Paulo – pouco depois desse tempo que convivemos no Rio – fizemos um trabalho juntos. Ele acabara de telecinar umas imagens e queria trabalhar nelas.
“Tem um lugar que vamos eu mais um amigo, tipo como madames vão ao shopping, que é o Centro dos Catadores de Lixo de Copacabana. Tudo que eles acham de interessante no lixo eles expõem num bazar. Aí tinham lá umas latas de 16 mm que eu acabei comprando por 1 real, umas imagens do caralho, feitas no interior da Bahia em 1927, uma cidade que meio que tá construindo uma ponte, tem uns cangaceiros, umas mulheres lavando roupa no rio”.
Além das imagens – realmente incríveis – que o maluco do Nilsão salvara da extinção, minha primeira surpresa é que, a não ser pela inclusão, em GC, de alguns fragmentos de coisas que estava lendo na época – Marcelo Mirisola, Thomas Bernhard, Strindberg (“não há duvida que eu sei ressuscitar os mortos”) – ele não mexeria nas imagens. Elas permaneceriam intactas, do jeito que sabe lá quem, há 80 anos, registrou aquilo. Todo trabalho então se daria no som. Nilsão chegou com uma disqueteira lotada de CDRs. Acontece que lá pelo meio do filme meu computador não conseguiu ler uma das faixas. Após várias tentativas, todas frustradas, ele disse: “Deixa pra lá, é melhor respeitar essas macumbas de edição”, enquanto revirava a disqueteira em busca de outra coisa. Pergunto se tem alguma idéia de título e ele diz que está em dúvida entre A vida como ela erra e Outubro 1927 – que é exatamente o que estava escrito nas latas.
“Se não estiver atento com o imprevisto, com o que está acontecendo na hora, você deixa passar a coisa mais importante. Na minha perspectiva, quando você quer o efeito e vai atrás dele eu acho menor do que você não planejar, ele acontecer e você aproveitá-lo. Quando consegui revelar as imagens do Tesão em Saquarema, por exemplo. Eu tinha um monitor velho em casa que era só ligar e entravam umas interferências da TV. Só que na hora que botei a fita, o áudio da interferência começou a bater perfeitamente com as imagens. Um absurdo. Apertei o rec na hora. Tá lá no filme até hoje”.
O áudio é ponto preponderante do seu trabalho. Lascas de música – muitas de amigos seus, músicos experimentais –, frases que curtiu em livros e esguichos de papos ouvidos na rua – que ele anota e depois chama os atores ou ele mesmo pra ler num gravador –, são editados anarquicamente como uma espécie de comício de tudo – falaê Chacal. Como não usa som direto, aproveita ainda pra sabotar uma das maiores obsessões dos editores normais: o sink. Faz questão de dublar uma fala totalmente diversa da que os movimentos da boca do ator ou atriz sugerem. Quando não bota alguém pra dizer frases de Foucalt ou Lewis Carrol com voz caricata e debochada de malandro carioca.
“Tá tudo muito limpinho. Precisamos do defeito”.
“Eu gosto do Ozualdo Candeias, do Seijun Suzuki, do Mojica, dos filmes do Pasolini. Acho que o último brasileiro que gostei mesmo foi o Brás Cubas, do Júlio Bressane. Numa aproximação estética e existencial óbvia, cito Ivan Cardoso e Jairo Ferreira. “Gosto das primeiras coisas do Ivan. E sou amarradão nos textos do Jairo; íntegro pra caralho”.
“Outro dia escutei um rabicho de conversa. Depois, um rabicho de áudio no rádio. E formei uma frase: Atravessando o deserto dos caminhos, um grito abandonou meu peito. E pensei porra, é lindo! Mas não era nada disso. Eu escutei meio errado. Era atravessando outra coisa dos caminhos, era outra coisa que abandonou o peito. O que eu quero dizer é que de uma certa maneira fui eu que fiz, mas não fui eu que fiz, sacou? Não tem nada original meu, não tive uma idéia e falei assim, vou escrever uma frase genial”.
Cena de Império das Pelúcias
“O problema da internet é que é meio frustrante nêgo achar que já viu o trabalho e não gostar tanto como poderia se tivesse visto bem exibido. Não é frescura, problema do site nem nada. É que meus filmes já trabalham muito no limite do ruído total. Mas de qualquer forma tá rodando, é bom”.
“O Rodrigo Amarante participou como ator e fez quase todos os filmes comigo. É um parceirão. Muitos textos são dele mesmo, feitos na hora, de improviso. O clip da música “Sentimental” [que foi recusado pela MTV] é um roteiro dele para um curta-metragem. E tive a honra também de apresentar algumas coisas do Erasmo pro Camelo. Eu falava porra, isso aqui tem a sua cara, aquele disco Sonhos e Memórias, manja?, tem uma música que é “Sábado Morto”, não, essa é do Carlos, Erasmo, enfim... há pouco tempo eles me chamaram, ‘vamos com a gente lá no estúdio, nós vamos gravar um negócio’. Aí chego lá e tá o Erasmo Carlos, me apresentaram pra ele... Eles tavam participando desse disco novo, de parcerias, e cantaram justamente “Sábado Morto”.”
“Meus filmes tem um lance que é o seguinte. Se você assistir apenas a imagem e desligar o som, como se fosse um filme mudo, ou então só escutar o som como se fosse uma rádio-novela, fica mais inteligível. Os dois juntos às vezes se atrapalham, embora um seja a alegoria do outro”.
“Uma das melhores críticas que recebi foi de um cara que chegou pra mim e falou: O Bandido da Luz Vermelha é um filme legal. Seu filme não é legal”. “Na Europa fui meio mendigo mesmo. Pô... nunca fui tão playboy na minha vida. Tinha dinheiro pra beber, comprar cigarro, putaqueopariu. Ganhava um almoço aqui, um lanche lá, uma laranja pra de tarde. Conheci uns italianos que tocavam bossa nova, fiquei amigo deles e como não sabia tocar nada eu corria o chapéu com nariz de palhaço. Em Cádiz, que é uma cidade fenícia, maluca pra caramba, eu dormia às vezes embaixo de um barco, num saco de dormir. De vez em quando eu ajudava o pescador a limpar a rede, que é um troço chato de fazer, rolava uns peixes”. “Na Mostra do Filme Livre veio um cara me dizer que o que eu faço não é cinema. Porra, graças a Deus. Tô achando o cinema chato pra caralho, não vejo um filme bom há 30 anos. Agora cá entre nós, como é que um hippie da gestapo vem falar um troço desses? Não eram vocês que acreditavam em contracultura e o cacete? Aliás, pra mim não existe esse papo de contracultura. Qualquer arte sempre foi contracultura. Se não, não adianta nada. Não vai problematizar, não vai te trazer dúvida nenhuma, vai ficar ali, pintando natureza morta. Então, nêgo vê meu filme, é simples: pode gostar ou não gostar. Eu não sou acadêmico, eu não sou porra nenhuma. Eu gosto. Entendeu? É coisa de relojoeiro, igual ter um fusquinha 56, gostar de kharmanguia”.
Subsolo
É quando você se depara com uma complexidade artística que é quase um desaforo. Nilsão é uma espécie improvável de “homem direto” – vide Dostoievski, Memórias do Subsolo – que cria. Seus filmes, para usar um clichê semiótico, são “novos objetos no mundo”. Definições como “eutanásia audiovisual” e “maoísmo fantástico”; os grafismos e hematomas que brotam da tela, oriundos do uso de rolos vencidos, somados à disponibilidade existencial para o imprevisto e à adulteração do áudio como campo de guerrilha, criam um universo estranho, anacrônico, escroto, onírico e arruaceiro que só a capacidade de um criador em inventar e habitar sua própria cidade fantasma – alguns chamariam de cosmogonia – tem a manha de nos mostrar.
Ao mesmo tempo fico pensando que isso é quase uma sacanagem – “mais forte são os poderes do podre, Marcelão” – em cima do trabalho de um cara anti-intelectual e anti-institucional por excelência. Tem uma frase do Buñuel que é mais ou menos assim: “Desvendar um mistério é como violar uma criança”. E um lance do Kerouac: “a única coisa que tenho pra oferecer ao mundo é minha confusão”. De modo que no final das contas é melhor ficar com a palavra do próprio autor sobre sua obra: “É uma linha muito tênue entre alguém chegar e falar ‘isso aí não é porra nenhuma’”.
Artista é o c...
“Eu sou apaixonadão por São Paulo. Uma das paradas que eu mais me identifico são os pixadores. Eles criaram várias fontes que eu acho bonitas pra caramba, originais, clássicas, da maneira deles. E eles tão aí, se comunicando. Não tem autor, vaidade, não passa por curadorias, interesses, dinheiro do Estado, não tem elite nenhuma no meio carimbando o que é bom e o que não é. Porque na verdade nêgo é covarde. Aceitaram a privada do Duchamp, que era francês, descendente de aristocrata, o Hélio Oiticica botou lá o “Seja marginal seja herói”, aí um cara do funk chega e fala “mete bala na cabeça da PM” e é preso. Qual é? O cara pode ser radical pra caralho, mas tem que vir do Country Club? Acho um puta retrocesso democrático. Porque na real esse país é estratificado pra cacete. Pega o Johnny Cash, “matei um homem só pra ver ele morrer”. Porra, não pode falar? Não adianta proibir uma pessoa de falar porque ela vai continuar sentindo. Tem que tratar com mais inteligência. Saber que tudo é passível de crítica. Tanto tudo que eu tô falando como tudo que todo mundo já falou até hoje”.
Império das Pelúcias
Gru é o nome de um dos personagens de A Frente Fria que a Chuva traz, de Mário Bortolotto, espetáculo que rolou naquela mostra do Cemitério de Automóveis no Rio de Janeiro, em 2005. Interpretado por Wilton Andrade, numa descrição simplificada seria um primata encravado no meio dos playboys e patricinhas que circulam pela peça. “Gru: puta nome de personagem” – lembro da gente, rindo, eu, Wiltão e ele, numa caminhada pela Atlântica até um mergulho no Arpoador. “Porra, Wiltão, eu sou totalmente Gru. E o Marião só criou esse personagem porque ele também é”.
Daí que Gru pelo Nilsão acabou virando uma categoria humana – “engraçado que meus amigos, os caras que eu gosto, não são gente fina”. Virou também o título do primeiro filme que rodou quando se mudou pra São Paulo, com os próprios Wiltão e Bortolotto em cena. “Eu morei ali na rua Aurora com Vitória e Guaianases que é um autêntico Triângulo das Bermudas. A zona, a boca e a delegacia convivendo harmonicamente com Igreja Evangélica, africanos, uma porrada de ciganos. E o Gru é meio que um documentário desses meus primeiros meses em São Paulo, filmado na praça Roosevelt”.
Vou reproduzir um trecho de um depoimento do Nilsão ao Thiago Camelo – que é irmão do Marcelo, do Los Hermanos – para o site Overmundo. Em determinado momento, o Thiago se pergunta: “com tantos filmes experimentais, que mal passam no cinema, como esse cara vive, dá pra ganhar dinheiro com o que faz?”.
Resposta: “Se eu fosse outra pessoa, sim. Mas do jeito que eu sou, não. Mas também não estou muito preocupado com isso. Trabalho é uma coisa que a gente troca por dinheiro. Pra pagar o condomínio. Aqui, você está tentando descobrir por uma investigação científica um desespero seu, sabe? Acho que quem ganha dinheiro é quem chega em casa, janta, vê um jornalzinho, vai pra cama e dorme”.
Atualmente Nilsão está sem residência fixa – entre São Paulo, Curitiba e Rio – trabalhando “na estiva” de um curta-metragem da produtora de uma amiga. Há um ano, num dos nossos primeiros encontros desde que ele tinha se mudado para São Paulo, estava pintando o apartamento de uma conhecida. No Rio, a atividade mais duradoura foi como motorista de táxi. No mais, passeios com cachorros, consertos de máquinas de lavar e bicos esdrúxulos como sublocar o ap a um grupo de teatro completavam o pagamento do aluguel. “É menos chato. Você tem uma relação mais lúdica com a coisa. Não fica querendo pagar o condomínio através daquilo”.
Caras como o Primitivo fizeram “uma escolha existencial errada”, diz o pesquisador e amigo Remier, citando a música “Artista é o caralho”, do Rubinho Jacobina. Quando nos encontramos para este papo, em frente ao Centro Cultural São Paulo, ele me perguntou quem era o figura que tinha me abordado, antes de entrarmos no bar. Era o Flávio, um doido que mora ali pela rua e trabalha guardando os carros. “Tem uns malucos que não precisam ler livro nenhum. Eles mesmos já são os próprios livros”.
Basta conversar um pouco com o Nilsão – ele próprio, um filme de si mesmo – para eliminar qualquer leitura romantizada e pré-concebida do tipo “cineasta-marginal-injustiçado”. Nilsão é um outsider – e “o problema do outsider é essencialmente um problema a ser vivido; escrever sobre ele em termos de literatura é falsificá-lo” (Colin Wilson). A idéia acima é complementada no nosso papo: “Não sou contra conseguir grana. Porra, é ótimo. Mas se não conseguir, vai lá e faz também. Porque não é por vaidade, nem pra fazer carreira. Acaba até virando, mas os motivos são outros. Angústia mesmo. É coisa de quem não consegue dormir direito à noite, sabe como é?”.
FILMES DO NILSÃO DISPONÍVEIS NA INTERNET
Disponíveis no site Porta-Curtas:
Mais Velho, Idade da Pedra, O Crack do Futuro, Tesão em Saquarema, Império das Pelúcias, O Exu do Amor e Gru.
Link: http://www.portacurtas.com.br/buscaficha.asp?Diret=22503
Disponível no site Curta o Curta:
Entrevista com Primitivo Gonzáles – Direção: Christian Caselli – Cor – 6´ Nilson Primitivo, que na Mostra do Filme Livre 2006 ganhou uma retrospectiva completa de sua obra de 7 filmes realizados em 16mm nos últimos 5 anos, fala um pouco sobre patologias e telepatias que dançam na liberdade criativa de fazer arte e não apenas ciência ao mesmo tempo que o sink perde-se para dar lugar a novos sentimentos nem sempre lógicos e/ou aflitos inclusive.
Link: http://www.curtaocurta.com.br/exibe_filme.php?a=106&c=151
“DESCONJUNTO DA OBRA” DE NILSON PRIMITIVO:
Mais Velho (Rio de Janeiro, 2000, 16mm, pb, 14’)
Tesão em Saquarema (Rio de Janeiro, 2001/2006, 16mm, pb, 8’)
O Exu do Amor (Rio de Janeiro, 2001, 16mm, cor, 2’)
Idade da Pedra (Rio de Janeiro, 2002, 16mm, cor, 5’)
Duelo das Loiras (Rio de Janeiro, 2002, 16mm, cor, 8’)
Dez pro Inferno (Rio de Janeiro, 2004, 16mm, pb, 2’)
O Craque do Futuro (Rio de Janeiro, 2005, 16mm, cor, 5’)
Império das Pelúcias (Rio de Janeiro, 2005, 16mm, cor, 7’)
Gru (São Paulo, 2006, 16mm, pb, 8’)
Alerta aos Carcereiros (São Paulo, 2007, 16mm, pb, 4’)
Quando a Verdade Vai Entrando ou Carta aos Cegos (Para Aqueles que Sabem Ouvir e Falar) (São Paulo, 2007, 16mm, cor/pb, 2’)
TRABALHOS COM OS LOS HERMANOS:
Documentário:
Ventura (2004, 52´) - Direção de Nilson Primitivo e Sérgio Lutz Barbosa. Road movie experimental com o grupo Los Hermanos e seus fãs através do Brasil.
Videoclipes:
Sentimental– (2001) - Direção: Nilson Primitivo – Roteiro: Rodrigo Amarante O Vento – (2005) -Direção: Nilson Primitivo
Texto publicado em: http://www.revistaetcetera.com.br
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